Ad Coimbra

segunda-feira, janeiro 16, 2006

Poesia... Mário de Sá-Carneiro

Sete Canções de Declínio
1.
Um vago tom de opala debelou
Prolixos funerais de luto d'Astro-,
E, pelo espaço, a Oiro se enfolou
O estandarte real - livre, sem mastro
Fantástica bandeira sem suporte,
Incerta, nevoenta, recamada -
A desdobrar-se como a minha Sorte
Predita por ciganos numa estrada...
2.
Atapetemos a vida
Contra nós e contra o mundo.
-Desçamos panos de fundo
A cada hora vivida.
Desfilemos, danças - embora
Mal sejam uma ilusão.
- Cenários de mutação
Pela minha vida fora!
Quero ser Eu plenamente:
Eu, o possesso do Pasmo.
- Todo o meu entusiasmo,
Ah! que seja o meu Oriente!
O grande doido, o varrido,
O perdulário do Instante -
O amante sem amante,
Ora amado ora traído...
Lançar as barcas ao Mar-
De névoa, em rumo de incerto...
-Pra mim o longe é mais perto
Do que o presente lugar.
...E as minhas unhas polidas -
Ideia de olhos pintados...
Meus sentimentos maquilhados
A tintas desconhecidas...
Mistério duma incerteza
Que nunca se há-de fixar...
Sonhador em frente ao mar
Duma olvidada riqueza...
- Nuno programa de teatro
Suceda-se a minha vida:
Escada de Oiro descida
Aos pinotes, quatro a quatro! ...
3.
-Embora num funeral
Desfraldemos as bandeiras:
Só as Cores são verdadeiras -
Siga sempre o festival!
Quermesse - eia! - e ruído!
Louça quebrada! Tropel!
(Defronte do carroussel,
Eu, em ternura esquecido...)
Fitas de cor, vozearia -
Os automóveis repletos:
Seus chauffeurs os meus afectos
Com librés de fantasia!
Ser bom... Gostaria tanto
De o ser...Mas como? Afinal
Só se fizesse mal
Eu fruiria esse encanto.
- Afectos?...Divagações...
Amigo dos meus amigos...
Amizade são castigos,
Não me embaraço em prisões!
Fiz deles os meus criados,
Com muita pena - decerto.
Mas quero o Salão aberto
E os meus braços repousados.
4.
As grandes Horas! - vivê-las
A preço mesmo dum crime!
Só a beleza redime -
Sacrifícios são novelas.
«Ganhar o pão de seu dia
Com o suor do seu rosto»...
- Mas não há maior desgosto
Nem há maior vilania!
E quem for Grande não venha
Dizer-me que passa fome:
Nada há que se não dome
Quando a Estrela for tamanha!
Nem receios nem temores,
Mesmo que sofra por nós
Quem nos faz bem. Esses dós
Impeçam os inferiores.
Os Grandes, partam - dominem
Sua Sorte em suas mãos:
- Toldados, inúteis, vãos,
Que o seu Destino imaginem!
Nada nos pode deter:
O nosso caminho é d'Astro!
Luto - embora! - o nosso rastro,
Se pra nós Oiro há-de ser!...
5.
Vaga lenda facetada
A imprevisto e miragens -
Um grande livro de imagens,
Uma toalha bordada...
Um baile russo a mil cores,
Um Domingo de Paris -
Cofre de Imperatriz
Roubado por malfeitores...
Antiga quinta deserta
Em que os donos faleceram -
Porta de cristal aberta
Sobre sonhos que esqueceram...
Um lago à luz do luar
Com um barquinho de corda...
Saudade que não recorda -
Bola de ténis no ar...
Um leque que se rasgou -
Anel perdido no parque -
Lenço que acenou no embarque
D'Aquela qu não voltou
Praia de banhos do Sul
Com meninos a brincar
Descalços, à beira-mar,
Em tardes de céu azul...
Viagem circulatória
Num expresso de wagons-leitos -
Balão aceso - defeitos
De instalação provisória...
Palace cosmopolita
De rastaquouères e cocotes -
Audaciosos decotes
Duma francesa bonita...
Confusão de music-hall,
Aplausos e brou-u-há -
Interminável sofá
Dum estofo profundo e mole...
Pinturas a «ripolin»
Anúncios pelos telhados
O barulho dos teclados
Das Linotyp' do «Matin»...
Manchete de sensação
Transmitida a todo o mundo -
Famoso artigo de fundo
Que acende uma revol'ção...
Um sobrescrito lacrado
Que transviou no correio,
E nos chega sujo - cheio
De carimbos, lado a lado...
Nobre ponte citadina
De intranquila capital -
A humidade outonal
Duma manhã de neblina...
Uma bebida gelada -
Presentes todos os dias...
Champanhe em taças esguias
Ou água ao sol entornada...
Uma gaveta secreta
Com segredos de adultérios...
Porta falsa de mistérios -
Toda uma estante repleta:
Seja enfim a minha vida
Tarada de ócios e Lua:
Vida de Café e rua,
Dolorosa, suspendida -
Ah! mas de enlevo tão grande
Que outra nem sonho ou prevejo...
- A eterna mágoa dum beijo,
Essa mesma, ela me expande....
6.
Um frenesi hialino arrepiou
Pra sempre a minha carne e a minha vida.
Fui um barco de vela que parou
Em súbita baía adormecida...
Baía embandeirada de miragem,
Dormente de ópio, de cristal e amil,
Na ideia dum país de gaze e Abril,
Em duvidosa e tremulante imagem...
Parou ali a barca - e, ou fosse encanto,
Ou preguiça, ou delírio, ou esquecimento,
Não mais aparelhou... - ou fosse o vento
Propício que faltasse: ágil e santo...
...Frente ao porto esboçara-se a cidade,
Descendo enlanguescida e preciosa:
As cúpulas de sombra cor-de-rosa,
As torres de platina e de saudade.
Avenidas de seda deslizando,
Praças d'honra libertas sobre o mar -
Jardins onde as flores fossem luar;
Lagos - carícias de âmbar flutuando...
Os palácios a rendas e escumalha,
De filigramas e cinza as Catedrais -
Sobre a cidade, a luz - esquiva poalha
Tingindo-se através longos vitrais...
Vitrais de sonho a debruá-la em volta,
A isolá-la em lenda marchetada:
A Veneza de capricho - solta,
Instável, dúbia, pressentida, alada...
Exílio branco - a sua atmosfera,
Murmúrio de aplausos - seu brou-u-há...
E na Praça mais larga, em frágil cera,
Eu - a estátua «que nunca tombará»...
7.
Meu alvoroço d'oiro e lua
Tinha por fim que transbordar...
- Caiu-me a Alma ao meio da rua,
E não a posso ir apanhar!
Paris 1915